sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Morrer na Rinchoa em 2011


Nove anos insepulta na casa onde morreu, no Grande Subúrbio anónimo e cruel, rodeada de vizinhos que nada estranharam.Vizinhos mas forasteiros, casas para dormir não para viver, condóminos da indiferença de costas voltadas para as portas da vida. Todos culpados todos inocentes, quem manda morrer em silêncio e para mais no quarto andar.Um nome: Augusta. Augusta, insepulta na pirâmide onde o Anúbis suburbano a deixou cativa, condenada pelo crime de ser velha, e pobre, e doente, agravantes fatais no processo- crime da sobrevivência.

Havia um sobrinho que nunca arrombou a porta pois faltava a ordem do Tribunal , porta é porta, e depois havia que pagar uma nova, quem é vivo há-de aparecer, ainda se houver herança atrás da porta...

Havia a nefanda segurança social que nunca estranhou, hordas de velhos mendigando dignidade,mais um papel, apenas um número, um código postal na Rinchoa,que importa, a morte resolverá.

Havia um polícia grotesco arrotando alarvidades do alto da pungente cretinice da farda sagrada que tudo permite, petulante.Se estiver morta cheira mal , se cheira mal dos pés e tem mau hálito está morto, os Watson da Rinchoa nunca se enganam debaixo da farda protectora.

Havia um cão cúmplice na vida e parceiro na morte, e um periquito à janela no sarcófago do quarto andar, todos orfãos da solidariedade para a qual só há tempo em chamadas de valor acrescentado que aliviem consciências apressadas, dois minutos que há que ir ver a novela.

Nove anos. Nove anos de chão frio, invernos, verões, entradas e saídas, a campaínha silenciosa, no correio só facturas.Ninguém a saber daquele número de contribuinte com pessoa dentro.

Apenas e retumbante, o Grande Urubu, o Fisco predador.

A penhorar.1400 euros, crime de lesa pátria, a justiça com a habitual injustiça.

Aí foi lembrada, com juros de mora e sem aviso de recepção ,com a canibal comitiva do necrófito oficial de diligências, do boçal policia e uma nova dona que nunca viu a casa mas alarve comprou.

1400 euros.

1400 euros, quanto foi preciso para que se levantassem celulíticos traseiros a saber se os números tinham nomes, lágrimas, dores, risos,para predadores e majestáticos logo os confiscar, os bens primeiro, a dignidade depois.

É Portugal e é 2011.

Fernando Morais Gomes

1 comentário:

Apostol disse...

Um caso forte, trágico, a merecer que pensemos sobre a nossa condição de ser português (ainda de brandos costumes), falido e egoísta. Mas, falidos e egoístas, continuamos com a sacrossanta indiossincrasia de embasbacarmos com ouropéis de pechibeque e olhando para o lado oposto da pobreza que nos incomoda, seguimos, ávidos, as peripécias do assassinato de um velho devasso que gostava de rapazinhos...